quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Criança & TV: Preconceito contra a TV

Professor da UNA, vice-presidente da Associação Brasileira de Televisão Universitária (ABTU), mestre em educação e doutor em educação, o jornalista Cláudio Márcio Magalhães, 42, realizou em sua dissertação de mestrado curiosa pesquisa partindo da premissa de que os programas voltados para criança no Brasil, seja nas emissoras educativas ou nas comerciais, não se baseiam em teorias pedagógicas, mas em paradigmas que, por sua vez, são fruto de preconceitos.

“Minha primeira idéia foi de desconstruir três desses preconceitos sobre programas para crianças. O primeiro é o de que TV comercial é do mau e a TV educativa é do bem. O segundo, que a emissora educativa não pode ter qualquer interferência comercial, ou vão se macular a filosofia e a missão da instituição. E o terceiro vem da constatação que, como os programas educativos se auto-intitulam como tal, a exemplo do Telecurso e Globo Ciência, supõe-se que os demais programas não o são. Com tantas limitações, restringe-se a discussão sobre a programação infantil a uma polaridade, a um maniqueísmo do que é ou não educativo”, diz o autor, que reuniu suas anotações no livro Os Programas Infantis na TV – Teoria e Prática para Entender a Televisão Feita para Crianças, lançado pela editora Autêntica.

Mantenedor do Instituto Acompanhar, de apoio a crianças em idade escolar, e ex-dirigente da TV Uni-BH Inconfidentes, em Ouro Preto, e da TV Cultura de Itabira, Magalhães conversou com a reportagem sobre sua pesquisa.

Gostaria que o senhor definisse o termo “programa educativo”.
Um programa é educativo por sua capacidade complexa de interagir com seu público, despertando-lhe a reflexão e o sentido, trazendo novos conhecimentos acionados ao seu cotidiano, produzindo experiências interdisciplinares e extemporâneas. Reforça a aprendizagem formal e contribui para uma formação pessoal sintonizada com o contexto social em que programas e público estão inseridos. Ou seja, programa educativo é aquele que faz com que o telespectador se aprimore, independente de estar na emissora privada ou educativa, de ter ou não comerciais. Daí a quebra de paradigmas do livro. O programa educativo deve ser pensado não a partir de suas intenções, mas a partir da interação com as pessoas que o assistem. Pode que um Castelo Rá-Tim-Bum, produzido por pessoas que entendem de educação, tenha potencialidade de ser mais educativo do que outro que visa exclusivamente o entretenimento, mas é prepotência de quem faz pensar que vai ter com certeza o resultado almejado.

Como foi a evolução histórica dessa programação educativa?
Esses programas no Brasil começaram do mesmo estilo dos que havia no rádio, como o Circo do Carequinha. E, na realidade, os infantis surgiram assim, baseados no circo, em que há um apresentador que agrega atenção, seja ele um palhaço ou uma loura, e chama várias outras atrações. Essa ideia de oferecer à criança alguém que apresente as atrações não vem da invenção da Xuxa, mas do circo. A TV só reproduziu isso. Com o tempo, as outras atividades pedagógicas também foram se aprimorando e surgiram os programas com núcleo dramático, como Vila Sésamo, com uma proposta construtivista e o uso de bonecos e da repetição. Nesse momento, os programas ainda não tinham uma 'consciência educativa’. Então, temos duas categorias evoluindo: de um lado, há os programas de auditório, que vêm do circo e são mais fáceis de produzir e lucrativos para a emissora; de outro lado, os de núcleo dramático, mas com vários quadros e a idéia de que deve haver variedade, ser uma revista colorida. Se olharmos o que se fazia há 50 anos e agora, só melhorou a tecnologia, mas a TV continua oferecendo o tripé novela, jornal e seriado/auditório. Os programas infantis seguem essa tendência.

Qual o papel da TV na educação da criança?
A TV, para as crianças, assim como para a sociedade, tem papel preponderante como teria qualquer instrumento tecnológico. Mas o mais importante é a escola e a família, e temos tanta responsabilidade sobre a TV quanto na escolha da escola ou da convivência familiar das crianças. Daí o problema de se colocar a TV de lado como se tivesse de se auto-regular. As crianças hoje se apropriam do mundo através da mídia e da TV, e não há um professor que a ajude a decifrar esse mundo.

Em que teorias pedagógicas se apóiam os programas infantis das emissoras comerciais e educativas?
Não há teorias, só paradigmas. O processo desde o início se dividiu em dois. Temos o educador, que tem grande resistência à TV e a vê como vilã da educação. Por outro lado, temos os comunicadores, que olham os profissionais da educação de nariz torcido, porque acham que vão exigir muito conteúdo. Aí de alguns anos para cá houve a união entre educador e comunicador, e as pessoas repensaram essa TV. Foi quando surgiram programas como Castelo Rá-Tim-Bum, na TV Cultura. O Vila Sésamo já fazia isso, mas era uma exceção. Hoje não se imagina fazer um infantil sem chamar um educador. Mas são dois campos isolados e há falta de conhecimento dos educadores sobre o que é TV. As escolas de formação de professores não têm disciplina como mídia e educação.

No prefácio de seu livro, Gabriel Priolli escreve que ao “desmistificar” conceitos como TV e criança, o senhor enriquece um debate que peca pelo maniqueísmo. Como seria isso?
Principalmente no Brasil, quando houve desenvolvimento da TV, o modelo adotado foi o norte-americano, em que há hegemonia da TV comercial e marginalmente ficava a TV educativa. O recado é que o que assisto na TV é comercial, frugal, superficial, mandado porque os anunciantes estão pagando. Não é o lugar em que vou me educar, isso é na escola e na TV educativa ou em algum programa auto-intitulado educativo, como os Telecursos. Para fortalecer esse modelo “marginal” educativo, ele não pode ser comercializado. Educação é algo intocável, que não pode ser vendido. E comunicação é entretenimento. A contradição está no fato de ser este um modelo positivista, baseado na diferença de classes, no qual o que é pago é bom, o que não é pago é público. São paradigmas difíceis de quebrar.

Quais as incoerências entre discurso e prática, ou, melhor dizendo, por que os produtores dos títulos “educativos” negam as interferências do mercado e, ao mesmo tempo, têm de se curvar à publicidade comercial?
Devemos parar de pensar que dinheiro é algo sujo, que corrompe. Devemos pensar que o dinheiro é parceiro e aí fazermos as coisas em conjunto. As boas ONGs trabalham sob essa perspectiva, de desenvolver projetos importantes que usam tempo e profissionais de quem tem recursos. Isso é processo de negociação em que alguém tem de abrir mão. Abrir mão não significa se curvar ao capital. É claro que se o patrocinador for um pecuarista e vetar um programa que fale contra o leite, por exemplo, o produtor vai ter de procurar outro parceiro. É tudo negociação.

Você estudou dois casos “exemplares”, Castelo Rá- Tim-Bum, da TV Cultura, e TV Xuxa, da Globo. Quais as semelhanças e diferenças entre eles?
São dois modelos distintos, o de série dramática e o da apresentadora. Castelo é uma finalização, o ápice do modelo dramático dentro de uma emissora educativa, que fez a TV Cultura sair do traço de audiência e ganhar projeção nacional. Traz uma série de experimentações do núcleo dramático e provocou essa quebra de paradigmas entre educadores e comunicadores. Vem de uma sequência de bons programas que a Cultura fez, como Bambalalão e X-Tudo, que desenvolveram a capacidade de se comunicar com público de maneira lúdica e educativa. Um ápice que não se repetiu mais. O TV Xuxa da Globo também é o ápice de um modelo, que vem lá do palhaço Carequinha até o ápice das louras apresentando infantis.

A que conclusão chegou?
Chegamos à definição do que é um programa infantil. O Castelo, feito e pensado por educadores, realmente tem o potencial de ser muito mais educativo do que o TV Xuxa, mas nem sempre o será. É feito para quem já é iniciado na educação, porque nem abre nem fecha uma questão. Por exemplo, ao tratar de higiene, não há um personagem falando com o telespectador sobre a importância de tomar banho. O telespectador deve conquistar o conhecimento, chegar a essa conclusão sozinho, e isso só funciona para a criança que tem algum nível de educação e consegue fazer abstrações. Talvez a criança de algum lugar mais pobre cante a musiquinha do banho, mas não vai fazer com que isso tenha valor na vida dela, será apenas entretenimento desassociado. Nesse sentido, em alguns casos, a Xuxa olhando nos olhos e dizendo que o baixinho tem de tomar banho, a mensagem direta de uma figura carismática, será mais efetiva para esse telespectador específico.

No cerne da discussão está a relação entre educação e diversão. Qual é o ponto de equilíbrio?
Entretenimento não é pecado. A criança aprende muito mais quando está se divertindo, isso é fato e mostra o quanto uma coisa está ligada a outra. Não há esse ponto de equilíbrio, vai depender de onde a criança está inserida. Um garoto com TV paga e vários canais pode ter acesso ao conhecimento e fazer ligações com o que aprendeu na escola. Mas mesmo essa criança rica, com toda disponibilidade, pode não ter educação na TV se o pai não convive com ela na frente do aparelho, ou se eles não vão brincar juntos. Se a criança for pobre, a inversão é a mesma. A conclusão do livro é que não dá para ficar nessa dicotomia, depende de quem assiste e da interação entre o telespectador e o mundo. Infelizmente ficamos discutindo os ícones, TV e criança, enquanto o mais importante é tudo que está em volta, qual o contexto, a intenção da produção, o que a criança está fazendo na frente da TV e qual o controle da sociedade sobre a programação. É mais fácil xingar a emissora ou botar a criança como coitadinha. A solução é discutir muito o assunto e levar as conclusões para as escolas e formadores de professores, deixar de ter medo de debater a TV tanto com os profissionais quanto com as crianças.

* texto de marcelo fiuza, do jornal o tempo, publicado originalmente no site da editora autêntica

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